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quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Roberto Carlos tem perna mecânica?

Por Edson Joel Hirano kamakura de Souza

Faz algum tempo que troquei alguns comentários com Nery Porchia - vice reitor da Unimar por muitos anos - pelo Facebook, sobre a época que ele trabalhou para o Grupo Silvio Santos. Nery coordenava a equipe que organizava e realizava feiras agro-pecuárias, por todo país. Foi nesse período, na feira de Tupã, que o conheci e, junto com ele, o Leon Abravanel, o Leo Santos, irmão do Silvio.

O Leo era grandão e despachado, cara do irmão. Ele apresentava um programa de televisão veiculado nos estados do nordeste. Lá o Silvio Santos era conhecido como irmão do Leo. Ele mesmo fazia questão de contar.

Um dia descobri, no parque da feira, que o Leo tinha uma perna amputada e usava uma prótese mecânica. Ele tinha convidado muitas garotas para brincar e eu, sem saber, chamei todas para o tobogã. Elas subiram comigo. Menos ele, que ficou amuado, encostado na grade nos vendo divertir. Quando quis saber por que ele não subira foi que percebi a gafe que dei. Ele arregaçou a calça mostrando sua perna mecânica e, falando um palavrão, me perguntou "como eu vou descer no tobogã assim".

O Nery me contou que um dia, num elevador lotado, o Leo perguntou ao Roberto Carlos, em voz alta, qual era a marca da perna mecânica dele e ficou comparando as vantagens das próteses de cada um. Roberto, falando baixinho, se limitava a pedir para o Leo parar com aquele papo. Na Feira do Zebu, em Uberaba, jogaram o Leo na piscina, sem a perna. E depois, a perna mecânica.

O despachado Leo nunca fez questão de esconder que usava uma prótese, ao contrário de Roberto Carlos que pediu a proibição de uma biografia não autorizada escrita por Paulo Cesar Araújo - Roberto Carlos em Detalhes - que narra o acidente que amputou sua perna direita, ainda criança, num acidente com uma locomotiva no dia 29 de junho de 1947.

Durante 16 anos Araújo pesquisou a vida do cantor e seu livro foi proibido pela justiça sob alegação de invasão de privacidade. Mais recentemente vários "artistas" apoiaram a ideia da proibição de biografias não autorizadas.

O jornal Notícias Populares, há 30 anos, também sofreu pressão para cessar matérias relativas ao acidente. Mas o fato é que Roberto continua se negando a falar sobre um tema conhecido de todos. O livro de Araújo narra esse episódio.

"Naquele dia, Cachoeiro amanheceu sorrindo e em festa para saudar o seu santo padroeiro que, segundo a Igreja Católica, foi morto e crucificado nessa data em Roma, durante o reinado do imperador Nero, no ano 65 d. C. Era feriado na cidade, dia de desfiles, músicas, bandeiras, discursos, ruas cheias de gente e muita alegria. (…)

Como tantas outras crianças da cidade, naquele dia Roberto Carlos saiu cedo e animado de casa para assistir aos festejos. Era tanta badalação que muitos pais preparavam roupa nova para os filhos estrearem justamente nesse dia. Por isso Zunga (como Roberto era chamado na infância) estava ainda mais contente, porque iria desfilar com os sapatinhos novos que ganhara na véspera. E qual criança não fica feliz ao ganhar uma roupinha ou um novo par de sapatos? Logo que saiu à porta de casa, Roberto Carlos se encontrou com sua amiga Eunice Solino, uma menina da sua idade, que ele carinhosamente chamava de Fifinha. (…)

Pois naquela manhã os dois desceram mais uma vez juntos em direção ao local dos desfiles. Ao chegarem num largo, logo abaixo da rua em que moravam, já encontraram todos em plena euforia. Desfiles escolares, balizas e muitos balões coloriam o céu do pequeno Cachoeiro, ao mesmo tempo em que locomotivas se movimentavam para lá e para cá. Construída na época dos barões do café, no século XIX, quando a cidade era um paradouro de trem de carga, a Estrada de Ferro Leopoldina Railways atravessava Cachoeiro de ponta a ponta.

Por volta de nove e meia da manhã, Zunga e Fifinha pararam numa beirada entre a rua e a linha férrea para ver o desfile de um grupo escolar. Enquanto isso, atrás deles, uma velha locomotiva a vapor, conduzida pelo maquinista Walter Sabino, começou a fazer uma manobra relativamente lenta para pegar o outro trilho e seguir viagem. Uma das professoras que acompanhava os alunos no desfile temeu pela segurança daquelas duas crianças próximas do trem em movimento e gritou para elas saírem dali. Mas, ao mesmo tempo em que gritou, a professora avançou e puxou pelo braço a menina, que caiu sobre a calçada. Roberto Carlos se assustou com aquele gesto brusco de alguém que ele não conhecia, recuou, tropeçou e caiu na linha férrea segundos antes de a locomotiva passar.

A professora ainda gritou desesperadamente para o maquinista parar o trem, mas não houve tempo. A locomotiva avançou por cima do garoto que ficou preso embaixo do vagão, tendo sua perninha direita imprensada sob as pesadas rodas de metal. E assim, na tentativa de evitar a tragédia com duas crianças, aquela professora acabou provocando o acidente com uma delas.

Diante da gritaria e do corre-corre, o maquinista Walter Sabino freou o trem, evitando consequências ainda mais graves para o menino, que, apesar da pouca idade, teve sangue-frio bastante para segurar uma alça do limpa-trilhos que lhe salvou a vida. Uma pequena multidão logo se aglomerou em volta do local e, enquanto uns foram buscar um macaco para levantar a locomotiva, outros entravam debaixo do vagão para suspender o tirante do freio que se apoiava sobre o peito da criança. Com muita dificuldade, ela foi retirada de debaixo da pesada máquina carregada de minério de ferro. “Eu estava ali deitado, me esvaindo em sangue”, recordaria Roberto Carlos anos depois numa entrevista. Mas naquele momento alguém atravessou apressado a multidão barulhenta e tomou as providências necessárias. “Será uma loucura esperarmos a ambulância”, gritou Renato Spíndola e Castro, um rapaz moreno e forte, que trabalhava no Banco de Crédito Real.

Providencialmente, Renato tirou seu paletó de linho branco e com ele deu um garrote na perna ferida do garoto, estancando a hemorragia. “Até hoje me lembro do sangue empapando aquele paletó. E só então percebi a extensão do meu desastre”, afirma Roberto, que desmaiou instantes após ser socorrido. Esse momento trágico de sua vida ele iria registrar anos depois no verso de sua canção O Divã, quando diz: “Relembro bem a festa, o apito/ e na multidão um grito/ o sangue no linho branco…”, numa referência à cor do paletó que Renato Spíndola usava no momento em que o socorreu. (…)

Naquela mesma manhã, no hospital da Santa Casa, o médico aplicou uma anestesia local de novocaína no acidentado e deu início à cirurgia. (…)

Na época, em casos semelhantes, era comum fazer a amputação da perna acima do joelho, prática mais rápida e segura. Mas Romildo tinha acabado de ler um estudo americano sobre ciência médica que explicava que os membros acidentados devem ser cortados o mínimo possível. Assim, a amputação da perna do garoto foi feita entre o terço médio e o superior da canela – apenas um pouco acima de onde a roda de metal passou. Essa providência fez com que Roberto Carlos não perdesse os movimentos do joelho direito e pudesse andar com mais desenvoltura."






terça-feira, 29 de outubro de 2013

O direito do leitor



Por Helio Saboya Filho

No debate sobre biografias travado entre, de um lado, escritores e editores, e, de outro, celebridades, não faltaram judiciosos argumentos contrapondo a liberdade de expressão ao direito de privacidade.

Mas e a respeito do digníssimo leitor, o destinatário da obra?

Biografia não é ficção. A escritora tcheca Janet Malcolm traça uma didática distinção entre um ficcionista e um biógrafo: o primeiro é “dono de sua própria casa e pode fazer nela o que quiser; pode até derrubá-la, se tiver inclinação para tanto”, ao passo que o biógrafo “é apenas um inquilino, que se deve ater às cláusulas do contrato, que estipula que ele deve deixar a casa (conhecida pelo nome de Realidade) nas mesmas condições que a encontrou”.

"Não sou contra biografias não autorizadas, "mas é preciso conversar" (Roberto Carlos)

Ao comprarmos um romance, esperamos “consumir” personagens, situações e locais fictícios, excitando nossa imaginação com suas inverossimilhanças e suas fantasias.

Não nos é dado o direito de reclamar da desarrumação premeditada, da ousadia do dono da casa que eventualmente a bote abaixo conosco dentro, pois ao sermos convidados a entrar nesse espaço já devíamos contar com isso. Se gostamos ou não do que lemos, é outra história.

A mesma condescendência não merece o escritor de não ficção. A casa que habita não é dele; é a realidade. Desarrumando-a, nos oferece um produto defeituoso. Derrubando-a, nos vende escombros, puro entulho literário.

Com cada grupo puxando brasa para sua sardinha em discursos nos quais ética e liberdade não raramente servem para ocultar o fundo pecuniário que os motiva, editores e biografados passaram a advogar complexas teses jurídicas submetidas aos tribunais — o que lhes é de direito, mesmo atuando dissimuladamente em causa própria.

Por parte de nós, apreciadores do gênero, convém apenas advertir que, por mais convincentes as entrevistas com seus protagonistas, por mais fidedignas suas fontes e por mais exaustivas as investigações empreendidas pelo escritor, nada nos livrará do risco de levar para a mesa de cabeceira uma mercadoria estragada, sem nenhuma garantia de qualidade, sem direito a troca, nem a devolução. E isso vale para biografias autorizadas ou não.

Helio Saboya Filho é advogado
Do Blog do Noblat