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sexta-feira, 8 de julho de 2022

Perturbação do Desenvolvimento da Linguagem atinge 7% a 10% das crianças

Crianças com perturbação do desenvolvimento de linguagem tendem a revelar problemas linguísticos que tipicamente incluem dificuldades ao nível da produção e da percepção dos sons da fala, da combinação das palavras em contexto-frase, na compreensão de palavras e frases e contextos narrativos.

Por Edson Joel Hirano Kamakura de Souza

Ana Paula Soares trabalha na área da psicolinguística e pertence ao Centro da Escola de Psicologia, da Universidade do Minho. Neste vídeo ela confessa que tem se interessado no estudo de crianças com problemas de comunicação, fala e linguagem. Para isso dá-se o nome de PDL - Perturbação do Desenvolvimento da Linguagem. 

Ana Paula explica que as crianças com essa síndrome desconhecem as regras dos sons da fala, das suas combinações que regulam o uso apropriado da linguagem. "Na infância essas perturbações atingem entre 7% e 10% das crianças mas pouco se ouve falar do assunto" - lamenta.

"Para que seja atribuído o diagnóstico de perturbação de desenvolvimento de linguagem é necessário que outras perturbações neuro desenvolvimentais, como a perturbação do espectro autista, a perturbação intelectual e déficits sensoriais, como perda auditiva, sejam excluídos" - diz Ana.

O vídeo contém legenda que você precisa acionar no seu dispositivo

O QUE É PERTURBAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM?

O termo perturbação do desenvolvimento da linguagem é usado para caracterizar as crianças que apresentam dificuldades significativas na aquisição e uso da linguagem para comunicar manifestadas em problemas de compreensão e/ou produção.

São crianças que apresentam competências linguísticas abaixo do esperado para sua idade, num ou mais domínios linguísticos e que interferem, de forma significativa, com seu dia-a-dia, com seu bem-estar psicológico e emocional e também com as suas aprendizagens escolares.

É importante notar que estas dificuldades não podem ser devidas a outras perturbações neurodesenvolvimentais, como a perturbação do espectro autista, perturbação intelectual ou déficits sensoriais, como perda auditiva embora, pelas implicações que trazem para a vida das crianças, possam ocorrer com outras perturbações comportamentais como o déficit de atenção e hiperatividade ou emocionais, como ansiedade ou depressão.

São, por isso, crianças em que os problemas da comunicação, fala e linguagem são inesperados face ao desenvolvimento que apresentam noutras áreas de vida e as oportunidades de estimulação oferecidas pelo meio em que estão inseridas.

Trata-se curiosamente de uma das perturbações neurodesenvolvimentais mais comuns durante a infância com prevalências oscilar entre os 7 e os 10 por cento, mas do qual pouco ou nada ouvimos falar.

QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DA PDL QUE SE PODEM OBSERVAR EM SALA DE AULA?

As crianças com perturbação de desenvolvimento de linguagem são crianças que, como referi, apresentam dificuldades significativas na aquisição e uso da linguagem. Mas dado que a linguagem é um sistema altamente complexo cujo uso implica conhecimentos e competências a diferentes níveis como, por exemplo, o conhecimento dos sons da fala e das regras de os poder combinar, a área da fonologia, a estrutura das palavras e as regras para as poder construir, a área da morfologia. As regras que permitem combinar as palavras em frases, a área da sintaxe, extrair o seu significado, a área da semântica e, ainda, as regras que regulam o uso apropriado da linguagem em contexto, a conhecida pragmática.

Crianças com perturbação desenvolvimento de linguagem podem, por isso, manifestar uma panóplia de características dependendo em larga medida das áreas de linguagem que são afetadas.

Em todo o caso, crianças com perturbação do desenvolvimento de linguagem tendem a revelar problemas linguísticos que tipicamente incluem dificuldades ao nível da produção e da percepção dos sons da fala, da combinação das palavras em contexto-frase, na compreensão de palavras e frases e contextos narrativos.

Apresentam também problemas significativos ao nível do uso apropriado da linguagem em contexto, em compreender significados não literais, da interpretação das intenções e necessidades comunicativas dos outros. Ao que se soma, frequentemente, problemas ao nível da retenção de informação verbal, ao nível da memória verbal. É por isso uma síndrome muito heterogenia, difícil de caracterizar tanto que podem existir múltiplos perfis.

Em todo caso os problemas de produção são mais fáceis de detectar do que os problemas de compreensão, que tendem por isso mesmo a ser subestimados. Quando os problemas são restritos à área da fonologia expressiva, isso associa-se habitualmente o melhor prognóstico.

A essas crianças deve ser atribuído o diagnóstico de perturbação dos sons da fala, exceto se os problemas persistirem para lá dos cinco anos de idade, como será o caso das crianças em idade escolar.

QUAIS SÃO OS SINAIS DE ALERTA DA PDL À ENTRADA PARA A ESCOLARIDADE OBRIGATÓRIA?

Todas as crianças que revelem problemas significativos de comunicação, fala e linguagem, à entrada da escolaridade, devem ser sinalizadas e intervencionados. Diria mesmo que os problemas mais simples, digamos assim, como aqueles restritos à área dos sons da fala devem ser atendidos. Porque não é suposto que crianças à entrada da escolaridade apresentem erros de produção de sons da fala como substituições ou omissões de forma frequente. Dizer pato em vez de fato, tama invés de cama, por exemplo.

Portanto, diria que nesta idade qualquer problema significativo no uso da linguagem deve constituir sinal de alerta para que os professores possam encaminhar para serviços especialidade, caso exista essa possibilidade.

Neste capítulo apresentamos uma série de comportamentos que podem de fato sinalizar problemas ao nível da linguagem que devem ser atendidos, para além, dos problemas ao nível da fonologia, problemas na descrição, por exemplo, de acontecimentos no dia a dia, em sequenciar histórias, em compreender textos.

Tudo isso deve ser sinal de alarme e não deve ser desvalorizado pelos professores.

QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS DIFICULDADES DE LEITURA E ESCRITA PRESENTES NA PDL?

A perturbação do desenvolvimento da linguagem é por definição uma perturbação da linguagem na modalidade oral. Contudo, dadas as continuidades que se estabelecem entre a linguagem oral e a linguagem escrita, a linguagem escrita surge na continuidade da linguagem oral assumindo-se como um segundo sistema de sinais.

Não é de surpreender que crianças com perturbação desenvolvimento de linguagem apresentem um risco significativamente maior, cinco a seis vezes mais, do que crianças sem PDL para apresentarem dificuldades acrescidas na aprendizagem da leitura e da escrita.

As dificuldades de leitura e escrita, muitas vezes, designadas por dislexia do desenvolvimento são também uma perturbação da linguagem e ainda que na modalidade escrita. À semelhança da perturbação do desenvolvimento de linguagem a dislexia é também uma perturbação sem causa aparente, cujo diagnóstico se realiza basicamente pela verificação dos mesmos critérios de exclusão da perturbação de desenvolvimento da linguagem e que apresenta estimativas de extraordinariamente similares às das crianças com dislexia em idade escolar, entre sete e dez por cento.

Esta sobreposição levou inclusivamente alguns autores a sugerirem que a perturbação desenvolvimento da linguagem e a dislexia deveriam ser entendidas como um continuum, como variantes de uma mesma síndrome neurodesenvolvimental e que termos como perturbação da linguagem deveria ser antes adotado para designar crianças com problemas de linguagem, independentemente da sua modalidade.

Contudo, e muito embora problemas de linguagem oral e escrita coexistam frequentemente, a verdade é que a evidência científica mais recente tem suportado a ideia de que se trata de perturbações diferentes e quando os critérios para cada uma delas elas são observados devem ser atribuídos os dois diagnósticos.

À semelhança da fala, a leitura e escrita, são atividades altamente complexas que envolvem dois processos essenciais. Os processos de decodificação, isto é, a capacidade para transformar as representações gráficas das letras na sua unidade correspondente no léxico mental usando numa etapa inicial as regras de conversão grafema-fonema, que permitem a recuperação da representação fonológica e da palavra armazenada no léxico mental ao que se segue numa fase posterior um acesso mais direto a palavra no léxico mental sem a mediação fonológica.

Envolve ainda processos de compreensão, isto é, a capacidade para utilizar a informação léxico-semântica das palavras para construir significados ao nível da frase do texto ou do discurso e que é fundamental à obtenção do conhecimento e a aprendizagem de uma forma geral.

Podemos assim dizer que as dificuldades da leitura podem emergir tanto de problemas ao nível dos processos de decodificação como ao nível dos processos de compreensão, ambos entendidos como essenciais ao desenvolvimento de uma leitura proficiente.

Problemas ao nível da decodificação tendem a ser observados em etapas mais precoces da aprendizagem da leitura e da escrita e estar mais associados a problemas de natureza fonológica, ao passo que, problemas ao nível da compreensão podem manter-se relativamente camuflados e ser apenas observados em etapas mais avançadas da escolaridade quando os textos se tornam mais complexos e exigentes do ponto de vista interpretativo.

Nesta conceitualização os problemas de leitura exibidos pelas crianças com dislexia são entendidos como decorrendo essencialmente de problemas ao nível da decodificação na ausência de problemas significativos ao nível da compreensão. O que é consistente com uma visão dominante de que o marcador da dislexia são déficits ao nível do processamento fonológico.

Dado que a maioria das crianças com perturbação do desenvolvimento de linguagem apresentam problemas de natureza lexical morfossintática e semântica, portanto, vocabulário pobre, compreensão limitada de textos, dificuldades na realização de inferências, elas tenderão a apresentar mais problemas de compreensão leitora podendo o seu desempenho, ao nível de fonológico, a manter-se relativamente intacto.

Contrariamente aquilo que acontece nas crianças com dislexia.

Quando assim é, o diagnóstico de dislexia não é normalmente atribuído. De notar, contudo, que mesmo que o diagnóstico de dislexia não seja atribuído a crianças com perturbação desenvolvimento da linguagem, isto não significa que estas não tenham problemas de leitura que podem impactar de forma muito significativa as suas aprendizagens e o sucesso escolar.

É que se as crianças entram na escola, numa primeira fase, para aprender a ler, rapidamente têm de ler para poder aprender.

E se há problemas a este nível não é difícil de antever o que isto poderá acarretar para essas crianças. Portanto, ainda que que os estudos indicam que algumas crianças com perturbação de desenvolvimento de linguagem conseguem escapar a consequência de desenvolver dislexia, quando entram na escolaridade, é importante enfatizar que elas tendem a apresentar problemas de compreensão que podem passar despercebidos, sobretudo, etapas iniciais mas que nunca deverão ser esquecidos.

Em qualquer caso é importante notar que mais de cinquenta por cento de crianças com perturbação do desenvolvimento de linguagem apresentam também os critérios para dislexia. O que é um número assustadoramente elevado. Isto sugere que se quisermos combater de forma eficaz problemas de leitura escrita e promover o processo educativo das crianças temos de começar muito antes.

QUE OUTRAS PERTURBAÇÕES PODEM SER CONFUNDIDAS COM PDL?

Como disse antes, para que seja atribuído o diagnóstico de perturbação de desenvolvimento de linguagem é necessário que outras perturbações neuro desenvolvimentais, como a perturbação do espectro autista, a perturbação intelectual e déficits sensoriais, como perda auditiva, sejam excluídos.

Embora a perturbação desenvolvimento de linguagem possa coexistir com outras perturbações comportamentais ou emocionais, como antes foi referido, e até serem muito comuns dadas as implicações que este tipo de perturbação traz para a vida destas crianças, a ideia básica é que ainda que as dificuldades de linguagem possam coexistir com outras perturbações, aliás como digo no capítulo a comorbidade entre perturbações é muito mais a regra do que exceção, nesta perturbação específica as dificuldades de linguagem devem ser primárias e não uma consequência de outras perturbações.

Se a criança tiver dificuldades significativas de linguagem, ainda que associadas a outra perturbação, como perturbação do espectro autista ou alguma condição biomédica conhecida, como por exemplo síndrome de Down, é recomendado que se atribua o diagnóstico de PDL associado, especificando essa mesma condição, por exemplo, perturbação do desenvolvimento da linguagem associada à síndrome de Down.

A preocupação aqui é que as crianças que apresentam dificuldades significativas da linguagem, ainda que elas possam decorrer de outras condições não sejam privadas de poder aceder a serviços especializados de avaliação e de intervenção que

possam minimizar os efeitos perniciosos que essas dificuldades acarretam na vida das crianças, das suas famílias e da sociedade em geral.

O QUE É QUE OS PROFESSORES PODEM FAZER PARA AJUDAR CRIANÇAS COM PDL?

Não pretendemos que os professores sejam clínicos e, portanto, sempre que possível, diria que essas crianças devem ser encaminhadas para serviços de especialidade nas áreas da terapia da fala ou da psicologia afim de serem avaliadas e que medidas de intervenção possam ser desenvolvidas, desejavelmente em articulação com os professores para que eles possam aplicar em sala de aula.

Em todo caso, no capítulo, apresentamos várias sugestões para que os professores possam, em primeiro lugar, munidos de mais conhecimentos ser capazes de identificar estas crianças em sala de aula e até de as poder avaliar usando para isso instrumentos de rastreio disponíveis, como é por exemplo caso da escala RALF, no português europeu que permite avaliar competências ao nível da compreensão auditiva, ao nível da expressão verbal-oral e também da metalinguagem.

Para o Brasil, os instrumentos de que temos conhecimento são instrumentos que são aplicados apenas por clínicos. Em todo caso, neste momento, estamos a desenvolver trabalho no sentido de produzir uma adaptação da RALF para o contexto brasileiro que pensamos que vem a ser de grande utilidade.

Porque é uma ferramenta muito, muito útil, que permite identificar de fato quais são as áreas mais deficitárias das crianças e onde a intervenção deve incidir.

Em Portugal, junto de algumas escolas, já temos tido este tipo de práticas e de fato parece ser um caminho muito, muito promissor porque permite uma avaliação muito mais sistemática e, a partir dessa mesma avaliação, os professores poderão aplicar atividades de uma forma muito mais intencional para responderem de forma mais efetiva às necessidades das crianças.

No capítulo são sugeridas algumas atividades que visam precisamente estimular competências linguísticas, nos diferentes domínios da linguagem, e que podem ser usadas em função das necessidades mais ou menos específicas a nível fonético-fonológico, léxico-semântico e até pragmático.

Trata-se de atividades simples e fáceis de implementar em contexto de sala de aula e que foram propostas pelas coautoras deste Capítulo, Marisa Lousada e Margarida Ramalho, que tem ampla experiência de intervenção neste tipo de situações.

QUE PERGUNTAS SUGERE PARA A REFLEXÃO? E QUAL É A PRINCIPAL MENSAGEM DO CAPÍTULO?

Penso que a principal mensagem deste capítulo é mesmo a de alertar os profissionais que trabalham diretamente com essas crianças, em especial os professores, que estas crianças existem, que frequentam as nossas salas de aula e que as suas necessidades não deverão ser desvalorizadas.

É que a sociedade em geral tende a ser muito condescendente com este tipo de dificuldades no pressuposto de que as trajetórias da aquisição são muito variadas, o que não deixa de ser verdade, mas há limites. E que o desenvolvimento se encarregará de corrigir tudo.

Afinal, o Einstein só começou a falar aos 5 anos. Essa é uma crença muita enraizada, não só na sociedade em geral, mas também entre as várias classes de profissionais que trabalham diretamente com as crianças, como médicos, enfermeiros, educadores e até psicólogos. Mas que deve ser combatida.

Sabemos hoje que os primeiros anos de vida são momentos-chave para que determinadas mudanças ocorram dado criarem as condições essenciais para que as aprendizagens e o desenvolvimento decorram da forma mais apropriada.

Não quero com isto defender uma perspectiva catastrofista, porque sabemos também que a neuroplasticidade é muito maior do que inicialmente antecipávamos. Mas não deixa também de ser verdade que quanto mais cedo na vida estas crianças forem finalizadas e intervencionadas, mais facilmente estas modificações poderão ser instaladas sem o custo que uma intervenção mais tardia, tipicamente acarreta não só do ponto de vista da eficácia da intervenção, mas sobretudo também do bem-estar da própria criança.

Esta iniciativa junta-se assim ou outras, lançadas por outros investigadores como Dorothy Bishop, da Universidade de Oxford, que lançou uma campanha em Inglaterra, precisamente para chamar a atenção para estas crianças e que nós, com este contributo neste capítulo, também procuramos dar um contributo a esse nível.

É que, apesar do seu elevado número, não podemos esquecer que duas a três crianças, em cada turma, apresentam esta perturbação e das implicações que estas dificuldades, quando não tratadas, acarretam para a criança, para as suas famílias e para a sociedade em geral.

As crianças com esta perturbação são tipicamente negligenciadas, tanto do ponto de vista da investigação, como do discurso político, e Portugal e o Brasil não são seguramente exceção.

Para terem uma ideia do que acontece do ponto de vista científico pensem, por exemplo, que a perturbação de desenvolvimento de linguagem e a dislexia são comparáveis, em termos de prevalência e severidade, ao déficit de atenção e a hiperatividade, mas o índice de publicação é 16 vezes menor do que o déficit de atenção por hiperatividade e quatro vezes menor do que no caso da dislexia.

Muitos fatores concorrem para isso. No capítulo 21, abordamos alguns deles como, por exemplo, as questões da própria terminologia, que é muito variada e que dificulta o diálogo entre os vários profissionais.

Do ponto de vista científico, nós estamos comprometidos com esta campanha temos um projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia que procura precisamente estudar estas crianças e encontrar marcadores neurobiológicos, que permitam a detecção precoce estas crianças e uma intervenção atentada.

Queremos que um outro eixo fundamental de atuação é mobilizar a sociedade e, em particular, os professores que trabalham com estas crianças, para que esta problemática não seja esquecida e para que possam de fato sinalizar, avaliar e desenvolver respostas que respondam de forma mais apropriada estas crianças e promovam o seu sucesso escolar e acadêmico.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Fernando Capovilla: nenhuma criança deve ser deixada para trás!


Por Carlos Nadalin

Fernando Capovilla é uma das maiores autoridades em alfabetização no Brasil, fala sobre a alfabetização fônica para crianças com dislexia, autismo, surdez, deficiência visual, deficiência intelectual.


PROF. CARLOS NADALIN: Fernando, com muita frequência recebemos perguntas de pais que dizem o seguinte: “Meu filho é autista, tem déficit de atenção ou síndrome de Down. Na hora da alfabetização posso usar as dicas do blog Como Educar Seus Filhos ou devo adotar outras estratégias?”. Você sabe que nós seguimos uma abordagem fônica, mas os pais têm essa dúvida.

PROF. CAPOVILLA: Perfeito! O método mais indicado para a alfabetização é o método fônico. Porém ele sempre deve ser adaptado às necessidades do educando. No caso do surdo, por exemplo, o método fônico deve ser precedido da língua de sinais ou, se a criança tiver um implante coclear de reabilitação auditiva, com o nosso método de leitura orofacial.

No caso de deficiência intelectual, síndrome de Down, existe uma redução da abstração, o que pode comprometer o método fônico apenas um pouco, mas apenas se você não fizer uso de atividades para compensar a falta de abstração. Essas estratégias sempre fazem uso do apoio em objetos. Por exemplo, quando faço uma tarefa de transposição silábica como: pata/tapa, bolo/lobo ou transposição fonêmica e/l/o e o/l/e, sempre dou um apoio visual, colocando uma sílaba numa caixinha colorida. Ou seja, você dá o apoio visual e assim a criança com deficiência intelectual consegue fazer as atividades metafonológicas e fônicas. É o método fônico com leves adaptações, sempre.

No caso do transtorno do espectro autista também é o método fônico o mais recomendado.

E acontecem fenômenos fascinantes, pois cada quadro tem sua assinatura. Uma das assinaturas da criança que nasce cega é não perceber os sons da fala cujas formas de boca sejam muito conspicuamente distintas ou semi-homófonas, porque ela nasceu cega.

Fernando Capovilla 
Um exemplo: [n] e [m] parecem iguais, mas são bem diferentes para quem tem visão. A criança que nasce cega não percebe a diferença entre [n] e [m]. Já a criança que nasceu vidente ouve e vê e por isso adquire mais facilmente essa compreensão.

Para a criança que nasceu cega é preciso adaptar o método fônico para o tato, e isso se pode fazer facilmente. Veja, [n] e [m] são muito distintos ao tato, da mesma maneira que [z] e [s]: [z] é vozeado, porque as pregas vocálicas vibram, enquanto [s] não é vozeado.

Veja como a vibração das cordas vocais são diferentes. Por exemplo, “em vaca”, “vibra” e “faca” não vibra. Temos então recursos para que a criança possa perceber a diferença entre os sons, dependendo de sua integridade sensorial. A criança que nasceu cega dependerá da audição, mas nos casos de homofonia o tato é a solução.

A criança com transtorno do espectro autista tem um fenômeno fascinante: ela faz menos contato ocular com o professor e portanto com a boca. Adivinhe, existe aí um comprometimento da leitura orofacial. Os sons que são muito distintos visualmente mas parecidos fonologicamente são os sons onde pode haver erros. A ciência serve para percebermos onde a criança está sofrendo e suprir essas necessidades. A ciência está aí como tecnologia e suporte acadêmico-pedagógico ao professor para fazer a criança brilhar.

Melhor método para TEA? Fônico! Melhor método para alfabetização de criança com deficiência intelectual? Fônico, com suporte! Para o disléxico? Não tenho dúvida! O método fônico previne a dislexia. Em gêmeos univitelinos, monozigóticos, teve altíssimo sucesso – em pré-alfabetização, com intervenção precoce, quando a plasticidade neural é máxima, na janela do desenvolvimento da linguagem.

O método fônico, sempre ele! Por quê? Porque a escrita mapeia a fala. Por isso a fala deve ser tornada muito conspicuamente discernível à criança de maneiras diferentes, dependendo da modalidade sensorial da criança que se encontra comprometida ou da modalidade neurolingüística que se encontra comprometida, como no caso da dislexia, da disortografia, que é a dificuldade de escrever por conta do código da escrita. Cada quadro – dislexia, disortografia, distúrbio de processamento auditivo central, transtorno do espectro autista, deficiência intelectual, distúrbio do sistema vestibular – onde se pode usar o método fônico amparado pela psicomotricidade – e, no caso, obviamente da língua de sinais para a criança surda ou implantada, o uso da língua de sinais com o método fônico com apoio visual.

Veja que interessante: a criança que nasce surda não tem acesso à heterofonia e vai usar a língua de sinais e tentar fazer a leitura orofacial da fala. Veja: “bico” e “mico” são sons faciais distintos, mas e nos casos de [p], [b] e [m]? Esses sons são iguais à visão, são homoscópicos. Como fazer? A criança é surda, e as unidades da fala são iguais à visão. O que fazer? Há várias estratégias. Quando digo para a criança “mico”, posso fazer com a mão a forma da letra “m” em linguagem de sinais. Já em “bico” posso fazer o sinal de “b”. Enfim, posso adotar várias estratégias.

A criança com a sua preciosidade nos convida a fazer uso da ciência para compreendê-la em profundidade e para dar a ela aquilo de que ela precisa. Nenhuma criança deve ser deixada para trás! É para isso que a ciência existe.

PROF. CARLOS: Perfeito! Capovilla, no meu curso Ensine Seus Filhos a Ler – Pré-Alfabetização, vários pais de crianças com autismo, síndrome de Down sempre enviam perguntas sobre essas adaptações e sempre digo o mesmo: “Você deve fazer adaptações com recursos multissensoriais para ajudá-las e continuar com a abordagem fônica”. Jamais substituir a abordagem fônica.

PROF. CAPOVILLA: Claro! A abordagem fônica, pessoal, vem do grego “foné”, que é voz. Fonologia é o estudo da voz. Fonema é a unidade da fala ouvida. Falar em grego é “laléo” e a fala ouvida é “otolalia”. A fala vista é “optolalia”. A fala tateada é “esteselalia”. O método fônico que usamos e desenvolvemos, turbinados pelo mapeamento da língua portuguesa – em todos os seus fones, lalemas, visíveis, táteis – é um método opto-oto-estese-lalo-grafêmico. É um método extremamente compreensivo, para abraçar a criança. O que vocês fazem no blog, e especialmente com esse novo livro, é muito lúdico. Nós entregamos ciência do mais elevado nível, com a arte em seu mais refinado gosto. Isto é o hemisfério direito: mímica, pantomima, música, gesto, expressão facial, brincadeira. E a fala é linguagem, hemisfério esquerdo, e todas as suas fases. Isso é neurociência de altíssimo nível, com arte de altíssimo nível para alfabetização.

O “nome do jogo” é servir e nós somos servos e o que queremos é ajudar você, professor, a fazer sua criança brilhar.

PROF. CARLOS: Com certeza! Capovilla, muito obrigado pelas respostas. Tenho certeza de que muitos pais vão ficar agora mais tranquilos com todo esse conteúdo.