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domingo, 19 de abril de 2020

Decretos são inconstitucionais e podem gerar avalanche por indenizações, diz Jefferson Dias

Por Edson Joel Hirano Kamakura de Souza

O Procurador da República Jefferson Aparecido Dias, do Ministério Público de Marília e um dos mais atuantes na questão da pandemia do Covid-19, foi ouvido na Sessão Aberta do Ministério Público Federal, de São Paulo. Falou sobre o papel dos governos municipal, estadual e federal, do ponto de vista jurídico, das medidas adotadas até agora. 

A principal abordagem é a questão do decreto que instituiu o isolamento social, situação de emergência e o estado de calamidade pública. Jefferson é taxativo: os decretos são inconstitucionais e podem gerar uma avalanche de ações por indenizações.

O que a constituição e a legislação dizem sobre isso? Quem pode declarar situação de emergência e estado de calamidade e qual é o procedimento?

Jefferson Dias
Jefferson Dias: Inicialmente é importante fazer uma observação. O Brasil, ao contrário de alguns países europeus, não adota a figura do decreto autônomo. Significa que no Brasil  o poder regulamentar nas mãos do chefe do poder executivo ele se limita a regulamentar leis existentes, ou seja: o presidente, governador ou prefeito podem editar um decreto apenas para regulamentar uma lei.

Ele não pode inovar no mundo jurídico. Ele não pode impor novas obrigações ao cidadão por meio de decreto. Para essas situações exige-se uma lei e após ser aprovada a lei, pode ser editado um decreto pelo chefe do executivo  - seja ele presidente da república, governador ou prefeito - para regulamentar essa lei. 

Decretos inconstitucionais

Então, de inicio, o que nos temos visto em todas as esferas de governo é a edição de decretos autônomos e, portanto, seriam decretos ilegais ou mesmo decretos inconstitucionais. O decreto só poderia vir para regulamentar uma lei e, praticamente em todas as situações, nós não temos essa lei precedente. O que nós temos é um decreto que inova no mundo jurídico e inovando  o mundo jurídico, ele acaba, portanto, violando a constituição e, por isso também, violando as leis pelo fato de não ter nenhuma lei que o ampara.

Além disso é importante dizer que a nossa constituição não prevê a expressão situação de emergência. O que nos temos na constituição é, sim, situação de calamidade pública. Ela está prevista no artigo 136 que a respeito de Estado de Defesa. Então, nessa circunstância, é possível a decretação de estado de defesa, pelo presidente da República, depois de ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional. Aí, sim, por força de decreto, impondo algumas restrições, restrição de reunião, de sigilo de correspondência,  de sigilo de comunicação, claro, tudo isso de acordo com a situação específica de acordo com o que se exige para aquele momento. 

Neste primeiro momento, o que nós teríamos? Além de necessidades de leis para impor restrições, nós teríamos a possibilidade de, também, o Presidente da República, por meio de decretação de Estado de Defesa, ai sim, impor algumas restrições por meio de decreto. Mas, da mesma forma se nós não tivermos uma lei definindo essa calamidade pública impondo restrições também não teremos essa situação de decretação de Estado de Defesa.

As medidas anunciadas por parte do governo federal e dos estados e municípios tem gerado um conflito federativo que em muitos casos até atrapalha as ações de saúde pública. Como o senhor analisa esta conjuntura do ponto de vista jurídico?

Jefferson Dias: É verdade, as pessoas que hoje veem os meios de comunicação veem uma situação bastante interessante, no mínimo, pra se dizer porque, as três esferas de governo tem decretado situação de emergência e adotado medidas diversas virando até um certo conflito federativo. O que é importante nós termos em mente é que, em regra, a nossa constituição não estabelece uma hierarquia entre as normas editadas pela união, estados e municípios. O que a constituição estabelece são âmbitos de competência. Então ela estabelece o âmbito de competência da União, do Município e o que sobra é do Estado.

Isso é um ponto interessante. A nossa federação é fruto de um movimento bastante peculiar. Por que? Os poderes foram concentrados, praticamente a maioria deles, na União que tem o poder de adotar medidas gerais, de coordenação, então tem muito poder concentrado na mão da União. E, nas mãos do municípios, legislar sobre interesse local. Sobra para o Estado uma competência remanescente ou residual; então ele pode legislar aquele espaço entre a União e os Municípios que não é muita coisa, não é verdade é muito pouco. Nos não somos iguais a outros países, por exemplo os Estados Unidos em que a grande parte das competências está nas mãos dos governadores. No nosso caso, não,  a maioria das competências está na mão da União.  Tanto que o estado de defesa, regulamentar transporte aéreo, várias outras temáticas estão nas mãos do governo federal.

Invasão de competências e decretos inconstitucionais

Mas, na pratica nós temos vistos, sim, uma invasão enorme de competências. Até alguns absurdos jurídicos: nós temos atos de governadores de estado fechando aeroportos federais, temos atos de governadores de estado restringindo a liberdade de ir e vir, impondo fechamento de praias o que seria impossível de se feito por meio de um decreto. Ainda mais um decreto estadual. Claro, poderia se discutir até que algumas dessas restrições sejam impostas por meio de lei, mas ai com competências próprias, a maioria delas nãos mãos da União.

Decisões esdrúxulas 

Mas tem ainda situações mais esdrúxulas: decisões de prefeitos, por exemplo, por meio de decretos, proibindo idosos de sair de casa. Impondo uma restrição plena ao direito de ir e vir de pessoas idosas o que também é inconstitucional porque viola a constituição de forma frontal, de forma incabível, impossível.

Qual é a saída jurídica para essas questões de conflitos apontadas pelo senhor e inclusive das críticas da comunidade médica e científica sobre a atuação do governo federal diante da crise que teriam gerado decisões dos governos estaduais?

Jefferson Dias: Na verdade o que deveríamos ter é uma coordenação nacional em conjunto com Estados e Municípios. A própria constituição estabelece isso, ela busca essa lógica ao estabelecer que cabe a União, em certa medida, coordenar, planejar e prover defesa permanente contra calamidades públicas, lá no artigo 21. Então, é uma competência da União

O que deveria estar acontecendo é uma atuação integrada de União, Estados e Municípios, analisando a situação caso a caso, analisando a situação de cada Estado e de cada Município. Porque isso é importante? Porque a situação não é idêntica em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outros estados do norte e nordeste, sul, sudeste. Os municípios tem particularidades, tem situações peculiares. E ai, cada uma das esferas de governo, dentro das suas atribuições adotar as medidas que são cabíveis. Se for o caso decretando estado de defesa, seguindo o ritual estabelecido pela constituição, sim, aprovando leis necessárias para a condução dessa fase de pandemia e aprovando leis e não apenas decretos. Decretos que muitas vezes são infundados e não se amparam em leis anteriores e avançam sobre competências de outras esferas de governo.

Interesses ocultos e não declarados

Como não temos essa atuação integrada e, aparentemente, os interesses envolvidos são muito diversos daqueles que republicamente deveriam estar envolvidos, ou seja, a condução do país no momento de pandemia, parece que isso não é o primeiro objetivo buscado por muitos dos governantes, existem outros interesses ocultos e não declarados que conduzem o país nesse momento, então, em razão disso nós vivemos essa situação de grande insegurança jurídica.

Busca desenfreada por indenizações

O que mais me preocupa, sou sincero, qual será o rescaldo disso. O que vai sobrar disso. Porque, como estão sendo impostas muitas restrições ilegais, muitas restrições por meio de medidas, de normas, tenho certeza que, mais cedo ou mais tarde serão declaradas inconstitucionais, é bem provável que muitas dessas medidas gerem um grande incremento no número de ações. Então teremos uma busca desenfreada por indenizações, uma busca desenfreada por questionamentos judiciais com relação a situações atípicas que foram impostas de forma inconstitucional.

O ônus desses desmandos

Então isso deve gerar, no futuro, um rescaldo bastante oneroso para o cidadão brasileiro, cidadão que já teve que arcar com as consequências da pandemia, tem que arcar com as consequências de um isolamento que não seguem bem os padrões que deveria seguir, um isolamento que tem uma divergência politico ideológica nele também envolvida, pior do que isso, ainda o cidadão vai ter que arcar com o ônus desses desmandos, desses atos ilegais, desses atos inconstitucionais porque a conta vai chegar. 

A pessoa que foi prejudicada por essas medidas ilegais, por essas medidas inconstitucionais provavelmente judicializará as suas demandas e existe um grande risco o poder público ser condenado a indenizar. Como o poder público não gera recursos, o Estado não gera recurso próprio, ele administra recursos que angaria dos seus cidadãos é bem provável que o cidadão pague a conta.

O que o ordenamento jurídico prevê quanto a margem de autonomia dos Estados e Municípios, no âmbito do SUS?

Jefferson Dias: Nesse ponto de atuação integrada, me parece que isso também deveria envolver o SUS. É verdade que o SUS impõe, digamos, responsabilidades solidárias entre União, Estados e Municípios. Mas, mais uma vez, a coordenação deveria caber a União com a colaboração dos Estados e com a visão peculiar, a visão local dos Municípios.

Lamentavelmente nós não temos muito bem uma política nacional, nós não temos testes suficientes, nós não temos respiradores suficientes, nós não temos uma coordenação nível nacional eficiente e eficaz.

Omissão dos prefeitos

Jefferson Dias: Além disso, em nível estadual nós temos uma equalização que me parece inadequada, todos os municípios estão sendo tratados de forma igualitária, salvo algumas exceções como é o caso do Rio de Janeiro que adotou algumas medidas diferenciadas para cada um dos municípios. Além disso nós temos uma postura inadequada em âmbito estadual, me parece porque não leva em consideração as características de cada um dos municípios, nós temos uma falta de coordenação em âmbito nacional e temos uma omissão do chefe do poder executivo municipal que, vendo a briga entre Estados e União prefere ficar quieto e não adotar nenhuma medida. Ao não adotar nenhuma medida ele acaba dando sinais contraditórios, ora adotando uma postura na linha do que defende o governo federa , ora em prol ou do que defende o governo estadual.

Então nós temos uma verdadeira desconexão. Na verdade nos temos uma atuação totalmente não integrada e o SUS, mais uma vez sofre as consequências. Os recursos são distribuídos de forma inadequada, concentrada em alguns lugares e faltando em outros lugares e sem uma gestão mais eficiente dos recursos públicos.


Então, em razão disso, poderemos ter consequências mais graves apesar de termos condições de enfrentarmos a pandemia, pode ser que tenhamos condições em alguns lugares, até leitos ociosos, e em outros falta de leitos. Seria importante, então, mais uma vez, uma atuação integrada que possamos, todos juntos, como nação enfrentar esses desafios, que possamos deixar momentaneamente os interesses pessoais de lado e pensarmos de forma mais republicana.

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