sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A história refém da memória


Por Denise Rollemberg

O historiador que estuda a ditadura civil-militar já conhece o debate que agora ganha maior amplitude devido à expectativa em relação à decisão judiciária sobre a ação movida por editores, questionando a faculdade de os biografados ou seus herdeiros proibirem biografias.

Para o pesquisador, historiador, jornalista etc, ter acesso à documentação produzida pelos órgãos de informação e de repressão, na qual alguém estivesse citado, era necessária autorização do mesmo ou da família, caso já tivesse falecido.

As restrições criaram, assim, graves distorções observadas sem maiores dificuldades, justamente e sobretudo, nas biografias, fossem escritas por historiadores ou jornalistas.

O debate atual, independentemente da época em que o biografado viveu ou vive, enfrenta aspectos semelhantes.

Não há como negar que a autorização interfere na autonomia e na independência de que o pesquisador precisa para escrever, ainda mais, um texto biográfico. No acordo estabelecido entre biografado e biógrafo, estabelece-se uma espécie de dívida que pode comprometer interpretações que venham na contracorrente do que o biografado ou sua família esperam ou desejam ver publicado. O biógrafo torna-se refém do biografado.

Se assim não for, ele, o biógrafo, parece ter quebrado a confiança que nele fora depositada, para não falar do impedimento da publicação de seu trabalho.

Seja quem for o biografado, é certo que sua vida e sua obra estarão permeadas por aspectos de todo tipo, dos mais aos menos nobres, para não entrar aqui nos casos de personagens tais como ditadores, genocidas etc.

O fato é que há uma enorme dificuldade de se enfrentar o lado escuro da Lua, os aspectos pouco edificantes na vida de quem quer que seja, como se as trajetórias humanas não fossem feitas também de desacertos, equívocos, misérias.

Assim, para se obter a autorização, não raramente se fica — ou se pode ficar — refém de uma relação cujo compromisso nem sempre se baseia na produção do conhecimento, mas, frequentemente, na construção e/ou preservação de determinada memória.

No confronto entre a memória e a história, a história tem perdido. A memória é seletiva, apaziguadora, maleável às vontades do presente. A história, não. Releva o personagem sem retoques, em sua grandeza e sua pequeneza, e tudo mais que existe entre os dois extremos.

Muitas das biografias autorizadas são hagiografias e, portanto, nenhum interesse têm para quem quer conhecer a história de homens e mulheres cujas trajetórias tiveram — ou têm — importância em sua época. A narrativa dessas vidas não pode ser acessível a uns e não a outros.

Ninguém deve se tornar guardião da memória, dono da história. Nem da própria história, principalmente quem se colocou no mundo através da política, da arte, do esporte etc., expressando suas ideias e posições, deixando, portanto, nele seu registro.

É exatamente a possibilidade de narrar a história de homens e mulheres dignos de biografias, abordando-os em sua dimensão humana, em suas contradições e tensões, do tempo e deles mesmos, a maior homenagem que se lhes pode fazer. O desrespeito seria deformá-los como seres perfeitos, mantendo-os desconhecidos e isolados do mundo no qual atuaram.

No mais, quando ouço o argumento segundo o qual o biografado se vê vulnerável a difamações e invasão de privacidade, lembro-me de Theodor Adorno que disse ser uma ofensa procurar nos judeus a razão da perseguição dos nazistas.

O problema, defendeu o filósofo alemão, não estava nos judeus, e sim nos nazistas, nos perseguidores, e não nos perseguidos. Seguindo o lúcido raciocínio, pode-se dizer que difamações e invasão de privacidade falam dos biógrafos, não dos biografados.

Denise Rollemberg é professora da UFF.